oi! 💌
como estás? Vivendo, de letra grande, dito assim enchendo a boca? vamos ser sinceros… a essa altura da pandemia no território brasilis estar Sobrevivente já é o bastante. sobreviver pode ser lindo também.
resolvi trazer beleza logo no título da carta - acho que todos precisamos. também é uma referência à frase escrita por Van Gogh numa das milhares de cartas que trocou com o irmão Theo durante a vida.
"Ache belo tudo o que puder. A maioria das pessoas não acha belo o suficiente."
sim, ele. o gênio da arte que vendeu só uma pintura em vida. ele, que viveu inundado em dívidas, humilhações e doenças mentais. esse Vincent enxergava o belo em tudo, e até as feiuras da vida traduzia em arte. via beleza em qualquer pedaço de natureza, e nos desajustados como ele. reivindicava um mundo justo e colorido.
e escrevia muitíssimo. as cartas dele pro Theo são uma autobiografia dos sentidos. engraçado que na mesma semana que revisitei a história cartografada de Vincent, revisitei também a minha. a minha vida com as cartas.
recebi uma imagem inusitada da minha dinda: uma carta que escrevi aos 11 anos e enviei pra eles quando moravam longe. com uma linguagem conversada [bem parecida com essa que temos aqui, rsrs], eu relato episódios corriqueiros da minha família, charminhos da minha irmã recém-nascida e carinhos da minha mãe.
uma espécie de crônica familiar que eu jamais lembraria se minha dinda Adriane não tivesse guardado com amor. me tocou profundo, e me fez pensar sobre o poder das cartas na vida da gente. ✨
elas contam aquilo que a memória não foi feita pra guardar: o fantástico trivial. a ligação recebida na hora precisada, o almoço interrompido por uma piada engraçada, aquela declaração surpresa, a folga acompanhada no meio de uma tarde da semana como se nem tivesse amanhã.
sem as nuances que as cartas trazem [ou traziam, porque caíram em desuso 🥺], essas coisas não restam. o que contamos sobre nossa vida, só de cabeça, são os altos e baixos. os miolos, esses se perdem - justo eles, que preencheram tudo até aqui.
numa live, o escritor angolano Agualusa diz que há muitos anos mantém um diário, e recomenda muitíssimo a todes que comecem o quanto antes. diz ele que só assim consegue capturar e eternizar pequenos minutos onde a vida acontece.
eu achei lindo. e inclusive comecei a desenvolver um hábito de escrever todas as manhãs. minhas páginas matinais são tudo: terapia, exercício, liberdade e fotografia. é com elas que vou tirando retratos das sensações antes que virem fumaça.
essa correspondência aqui contigo também é isso, numa escala semanal. me faz guardar e compartilhar uma parte genuína de mim que está sendo agora, mas certamente não será amanhã.
espero que tenha te inspirado a escrever. aliás, me escreve! e-mail, comentário, carta, me diz o que te toca. eu amo. 💜
um beijo!
com amor, amanda.
P.S.
✏️ li ano passado a mais completa biografia do Van Gogh [ou Vincent como passei a chamar desde então, por força da intimidade que o livro nos dá]. absolutamente incrível, a história é contada com uma perspectiva generosa. Steven Naifeh e Gregory White Smith relatam a vida como Vincent pintava paisagens, com cor-poesia.
✏️ essa semana ouvi no podcast vivieuvi um episódio inteirinho dedicado ao Van Gogh. Vivian Villanova lê trechos de cartas que ele escreveu pro Theo. indicio muito, se quiseres ter uma noção de como ele se comunicava com paixão [mas não deixa de ler o livro se puder!]
✏️ será que tu gostas de músicas instrumentais como eu? espero que sim, porque tenho indicado só isso, rsrs. hoje trago uma dica pra quem gosta de trabalhar, escrever ou ler ouvindo uma batida eletrônica calma. o canal Lofi Girl fica 24 horas ao vivo tocando lofi, esse estilo gostosinho. criaram até uma personagem, a Lofi Girl, que fica ali estudando e ouvindo com a gente. 🎵
verso
nessa carta [ou metacarta] que fala sobre ela mesma, trago um poema que é meio carta meio terapia. ele também está no áudio de hoje, declamado. aprecie como quiser, sem moderação nenhuma. 💜
.
carta terapia
tenho vontade de escrever uma carta
pra quem, não sei
um destinatário sem rosto, sem nome,
perfeito pra despejar tudo
tudo que, confesso, ainda nem elaborei
.
começaria assim:
.
querido desconhecido
que não é daqui,
do tempo-espaço, eu sei,
segue outra realidade,
vim te contar como é
sobreviver nessa tempestade
eu tô legal, muito bem por sinal
afinal viva nesse carnaval
nessa avenida de gente morta
“e daí?”, fala um boçal
.
eu tô respirando de nariz
batendo de coração
só não tô funcionando bem de
Intuição
essa coisa chamada
Emoção
rasgou e tô tentando remendar
com poesia.
me ajuda muito essa carta,
meio poema, meio terapia.
.
sabe, desconhecido, tive impressão de que já te vi
mas deixa pra lá
pode ser confusão, ou
necessidade de conexão.
voltemos ao meu desespero:
.
eu desespero pelo que foi
e pelo que poderia ter sido
pelo que a gente deixou de imaginar
porque até a esperança resolveram nos roubar
ela foi tirada a tapas, puxões de cabelo
violência explícita
essa que homens brancos gostam de usar
assim se foi a esperança parar num cativeiro
onde chorou nossa incapacidade de se salvar
sonhar
conversar
e amar
.
melhorar como Gente
.
acho que o problema foi o futuro,
esse tal com um quê de inalcançável
outro tanto de confiável.
a gente sempre sabe que ele vai chegar,
e que vai ser bom
luz neon
carro flutuante
a gente mais igual
mais inteligente
uma sociedade mais…
normal.
.
não era esse o combinado?
mas o futuro que virou hoje nos traiu,
foi uma encomenda que deu errado
.
falando assim
me lembro de onde te conheço, caro destinatário
te vi de relance, mas logo te perdi
fugindo no sentido anti-horário
sim! és o próprio: o sacana do futuro
esse que nunca está, mas sempre promete
um lugar seguro
calma, não vou te culpar por essa decepção
sei que a tua verdade é fruto da nossa miséria
e tuas promessas, da pobre imaginação
.
agora que sabes em que pó transformamos teu ontem
te concedo o bastão do purgatório
e rogo pra que, de onde estás,
dê um jeito de avisar por favor
onde estão as saídas de emergência
e os manuais...
poxa, futuro, nos escreve mais!
ajuda a revolução a encontrar
o caminho de amanhã
não dá pra ver, tá tudo tão
cinza, nublado
sem mapa, nem sinalização.
.
a gente precisa urgente de uma indicação
que nos faça voltar praquela viagem até aí
lembra?
terra firme, estradinha de chão
flores no canteiro,
e o vento soprando um recado:
o futuro está escondido na compaixão.
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