oi
esta é nossa primeira carta de 15 em 15, e não semana a semana como costumava ser. e mesmo sendo a carta mais demorada até agora, ainda levou umas boas horas a mais que o habitual para selar e chegar
ou então ela chegou no Tempo que devia
que é o seu
o Tempo da demora, esse que também
precisa-se reivindicar nos relógios
semana passada eu tomei um Tempo pra mim, fui tratar cantinhos delicados de dentro. acelerei trabalhos a entregar, pedi licença pro meu livro e meus estudos [que tudo compreendem, pois foram eles que me ensinaram sobre demorar]
e então voei pra casa da minha mãe. tomei pra mim uns dias pra ficar com ela, irmãs, padrasto, avós… e vó nonó, grande motivo dos meus mini-sangramentos torácicos.
eu já falei muito dessa avó nas nossas cartas, inclusive sobre as cartas que ela já me escreveu, e talvez sobre o fato de ela me inspirar. atualmente, muito. uma mulher de 94 anos, professora, mãe de 3, avó de 8, forte como um touro, mente sagaz agora confusa em [rápida] degeneração.
pois eu fui vê-la
trocar palavras que pouco entendemos uma da outra, trocar carinhos que entendemos bem mais, sorrisos de reconhecimento que valem todo o Tempo reservado a esse encontro
voltei ontem para São Paulo pensando sobre as horas. aquelas que vão, as que chegam, as que correm agora mesmo. o Tempo que destinamos a cada coisa, ou aquele que pausamos porque enfim descobrimos que é possível
pausar
e porque é possível, se faz urgente
a vida que amamos, aquela que nos arranca sorrisos e palavras de amor, se passa aí
na pausa
eu não sei se minha vó vai lembrar que estive lá. que trocamos olhares e carinhos e que em alguns instantes ela me sabia ali. não sei como funciona a memória de alguém que aos poucos se desacostuma a lembrar, ou que prefere gastar toda sua tão valiosa energia para sonhar com um passado mais além
um passado de pernas longas e saúde demais
talvez ela lembre pra trás, e nossos últimos encontros se percam em algum outro canto dentro dela. ou talvez essa memória recente que criamos juntas esteja guardada em algum outro lugar
numa brecha
alguma pausa de pensar
um rosto uma foto
no sorriso da minha mãe, que é igual ao meu
quando alguém fala meu nome e ela sorri
ali vou estar, quero pensar
comigo, minha vó veio. e dessa nossa pausa tão bonita tiro força pra seguir de longe, escrevendo, lendo, trabalhando… gastando as horas com calma para que elas não me gastem demais
obrigada pela leitura e pela espera por essa carta de demoras
um beijo
com amor, amanda
p.s. 📚
[especial Virginia Woolf - no verso explico por quê…]
verso
essa semana foi comemorado o Dalloway Day, um dia dedicado a uma das personagens literárias mais icônicas da história [e uma de minhas favoritasss]. era metade de junho quando:
“Mrs. Dalloway disse que ela mesma iria comprar as flores.”
assim começa o romance de Virginia Woolf, escrito com seu típico estilo fluxo de pensamento. só com essa pequena frase tão simples e potente já sentimos a força dessa personagem que não precisa que ninguém compre suas flores. Clarissa Dalloway, vai dar uma festa e enquanto sai para comprar as flores, somos convidados a passear entre as mentes de cada personagem envolvido no evento.
dentro dessas peles, vamos sentindo cada passo dado pelas ruas de Londres
uma cidade com suas horas, suas pausas e faltas.
colhi esse trecho e gravei em áudio pra ler contigo:
“[...] dava para sentir, Clarissa estava convencida, mesmo no meio do tráfego, ou caminhando à noite, uma quietude, ou solenidade, peculiar; uma pausa indefinível; uma expectativa (mas também podia ser o coração, afetado pela gripe, como diziam) antes das batidas do Big Ben. Lá vêm elas! E então ressoaram. Primeiro uma advertência, musical; depois a hora, irrevogável. Os círculos plúmbeos dissolvendo-se no ar. Que tolos somos, ocorreu-lhe ao atravessar a Victoria Street. Só Deus sabe por que a gente gosta tanto disso, por que vê isso dessa maneira, cria tudo isso, constrói isso ao nosso redor, desfazendo e refazendo tudo a cada instante; porém, mesmo as mulheres mais enxovalhadas, as indigentes mais miseráveis, sentadas nos degraus de entrada (arruinadas pela bebida), também faziam o mesmo; não era algo que se podia resolver, disso tinha certeza, com leis do Parlamento, e exatamente por esse motivo: elas amam a vida. Nos olhos das pessoas, em seus passos gingados, cadenciados, arrastados; no alarido e no tumulto; nas carruagens, nos automóveis, nos ônibus, nos furgões, nos homens-sanduíche que avançavam oscilantes; nas bandas de música; nos realejos; no triunfo e no repique, e no estranho zumbido de um aeroplano no alto, era bem isso o que ela amava; a vida; Londres; esse momento de junho."
Virginia Woolf - Mrs. Dalloway
o Tempo de demorar