oi
autoconhecimento é bom. mas já experimentou se desconhecer?
todavez que alguma boa alma leva a palavra da saúde mental aos 4cantos, o que acho ótimo, noto que a tecla batida e muito gasta é a do autoconhecimento. o que também acho ótimo, porém insuficiente.
como eu sou a tarada dos conceitos profundos das palavras [a essa altura de tantas cartas tu já deves saber], hoje pego a pá e o baldinho pra cavar bem fundo o autoconhecimento, saber de que matéria é feito, o que quer dizer; e o que não diz.
se conhecer. descobrir cada célula que nos compõe. nossas frestas, nossas sobras, o que marca.
o que nos faz ser, o que queremos, ou não suportamos… aprender a respeitar nossos desejos. ah, não há nada mais libertador… mas…
[chegou a hora do mas]
se conhecer é entrar numa daquelas cabines psicodélicas de milhões de espelhos - spoiler: isso pode ser perturbador.
como todo ser humano do século 21 [não posso falar pelos humanos do futuro, que certamente já devem ter arranjado jeito de atingir a perfeição], temos pedaços desagradáveis.
há espelhos maneiros, outros bem indigestos, estão todos juntos montando uma imagem multiplicada e confusa da gente. os reflexos de que não gostamos nos desafiam: gritam. e a certo ponto, é só nessa parte que conseguimos pensar, em como somos falhos.
capengas
inacabados
normais
absolutamente normais, como a inteira raça humana.
e o que fazer quando nos conhecemos demais? quando queremos desver? dessaber o que agora sabemos sobre nós?
a busca urgente pela lucidez em algum ponto sempre chega a desejar um pouquinho de ingorância.
se autoconhecimento é um caminho sem volta, a única saída é pegar a estrada rumo aos pequenos desconhecimentos de si. e este, pra mim, é o ciclo ideal da saúde mental.
conhecer e, então, despedir-se.
"Desconhecer-se conscientemente, eis o caminho.” - Fernando Pessoa [o poetinha favorito aqui de novo]
o trabalho lento e paciente da triagem de espelhos. saber quais, apesar de desgastados, decidimos abraçar; e quais já não nos servem mais, sashay away [bye bye].
abraçar com carinho nossos pedaços viciosos
como quem está prestes a se despedir de
um amor na estação de trem, deixar que esse
alguém que somos siga outra sorte
outro Tempo que não pretendemos visitar
um ontem, um talvez nunca mais
cortar pedaços dói. é despedida e luto, como perder alguém.
também é oxigênio. o ar que se expande e se acumula num espaço novo que se abriu. lugar para outros pedaços, outras formas de existir.
recortar-se é ver restar a verdadeira presença do que somos hoje, apenas hoje.
te desejo uma vida cheia de desconhecimentos.
um pleno estar no Tempo presente.
um beijo
com amor, amanda. 💜
p.s.
essa semana li Noturno do Chile, de Roberto Bolaño. é um jorro, um monólogo na hora da morte. sem respiro [o livro todo, num único parágrafo], é um flash atravessando a vida desde o início, inclusive as sensações de morte em vida quando um golpe de Estado corta a realidade ao meio. genial.
terminava de escrever esta carta quando surgiu Mercedes Sosa na conversa com Gus [tinha referência a uma canção dela no livro que ele lia, poeta chileno, de Alejandro Zambra]. sou fã alucinada de Mercedes. achei que era um sinal pra colar uma das músicas dela nessa carta sobre recortes:
Cambia lo superficial
Cambia también lo profundo
Cambia el modo de pensar
Cambia todo en este mundoCambia el clima con los años
Cambia el pastor su rebaño
Y así como todo cambia
Que yo cambie no es extraño
verso
pra dar as mãos a Marcedes trago outra deusa das grandes profundezas: Hilda. neste poema, Hilda Hilst fala sobre o Tempo devorador de partes de nós. tomei a ousadia de declamar no áudio que acompanha essa correspondência. espero que goste 💜
.
"Soergo meu passado e meu futuro
E digo à boca do Tempo que os devore.
E desgustando o êxito do Agora
A cada instante me vejo renascendo
E no teu rosto, Túlio, faz-se um Tempo
Imperecível, justo Igual à hora primeira, nova, hora-menina
Quando se morde o fruto.
Faz-se o Presente.
Translúcida me vejo na tua vida
Sem olhar para trás nem para frente:
Indescritível, recortada, fixa."
Hilda Hilst
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