quebrar as conchas
oi 💌
antes de avançar carta adentro, saiba do embate: as linhas de hoje foram escritas pela amanda antissocial e corrigidas pela amanda razoável - esta, coitada, clama por voz rsrs
de tudo que a pandemia nos tirou, tem uma perda que não é a mais triste [óbvio] nem a mais incômoda [a olho nu]. é uma perda pequenina como uma traça, que de pouco em pouco vem discreta devorando partes de nós.
é a perda da famosa-saudosa vontade de estar com pessoas
a morte social operada pelo medo.
não sei se isso te abate. talvez antes da vida covid tu já não apreciavas muitas relações, ou quem sabe não deixaste de estar rodeado durante a peste, ou simples assim, não te acontece de sentir a inadequação…
tem o caso das pessoas [a maioria] que não tiveram o luxo do isolamento, porque até medidas de sobrevivência são para poucos. pensar sobre socializar ou não é coisa de quem pode, eu sei…
mas hoje trago esse desabafo porque me custou perceber que, sim, os outros me fazem falta. eu não sou inteira sem todo mundo. sem a possibilidade de multiplicar carinho e afeto quando bem entender. não por telas, não por fones, mas pela primária tecnologia dos olhos e ouvidos.
sentir perfumes, abotoar abraços, aprofundar o olhar naquela pupila que não enxergávamos com nitidez há tanto tempo. saber que nossa voz vai ser ouvida independente do sinal wi-fi.
tudo isso é lindo,
acontece que eu não queria.
após dois anos desviando de gente na rua, com ansiedade numa simples ida à feira, sem perspectiva de encontrar amigos, me acostumei a não ver ninguém [além do meu companheiro]. virei uma alérgica social, isolada por si mesma sem escrúpulos.
e estava tudo bem assim. com a ressalva de que: não estava. rsrs
dentro de mim pequenos buraquinhos de um tipo de solidão se formaram e não puderam ser preenchidos pela família, pelos amores, sequer pelos filmes, livros e poemas de varar a noite. porque há lugar para cada coisa dentro da gente, e tudo que preenche um espaço escorre pelos outros como líquido fino ou grosso demais.
as relações que nos alimentam têm diferentes densidades: é preciso preencher cada copo com sua sede.
descobri isso há uns meses, quando chorei de saudade de pessoas. vivendo no modo ostra, numa semana não troquei uma única palavra com alguém que não fosse o Gus aqui em casa. estava tão virada pra dentro que não mandei mensagens, não fiz ligações, não vi o rosto de ninguém, não interagi, não fui ouvida ou existida fora das minhas paredes.
todos os buraquinhos abertos pela traça choraram ao mesmo tempo. um esvaziamento que só quando chega a vazio se reconhece.
com a ajuda da terapia, desvendei esse transborde. dando lugar à amanda razoável, a antissocial se obrigou a sair na concha, ver que a vida de um jeito ou de outro precisa continuar e é preciso se vestir dos afetos.
desde então reencontrei amigas antigas que vivem aqui em São Paulo e, palmas pro esforço da amanda anti!👏, fiz até novas amizades!
fui no lançamento do livro da Julia, amiga querida que a escrita me deu, e conheci uma outra amiga totalmente ao acaso, numa esquina livreira cervejeira, num dia em que o ímpeto de viver a rua me tomou.
Erika é uma paulista artista e poeta com quem um carinho brotou improvável e repentino, como um pedacinho de grama na fenda do concreto.
a fotografia é do presente que a nova amiga fez pro meu aniversário. de defumador pra aquecer o coração a uma aquarela-bordado pintada de esquina, seus poemas escritos a mão e até uma carta de amor como essa que te escrevo. 💌
o carinho me tocou profundo. fez pensar nos incríveis encontros que me esperavam [literalmente] na esquina enquanto eu fechava buraquinhos e saía porta afora.
espero que esta carta também seja pra ti um afago e um lembrete: por mais que a concha pareça um lugar macio, nela não se pode ser completo.
um beijo enorme
com amor, amanda 💜
P.S.
✏️essa semana li o livro iô, de Camila Lourenço, de quem fui colega num curso de escrita. na prosa em versos, iô conta a história de uma mulher ligada à natureza que é confrontada pelo sistema selvagem e patriarcal da cidade. li numa tarde e gostei bastante! sempre digo: leia mulheres vivas, que escrevem nosso tempo.
✏️nunca tinha lido Macbeth e resolvi ler antes de assistir ao filme com Denzel Whashington e Frances McDormand que concorre em categorias do Oscar. foi automaticamente eleito o melhor livro que li de Shakespeare até hoje [na frente de Mercador de Veneza, Megera Domada e Rei Lear]. é um livraço! mas o filme…
🎬 …foi ainda melhor! A Tragédia de Macbeth é uma das experiências cinematográficas mais incríveis que tive nos últimos tempos. em preto e branco, com uma fotografia inacreditável, interpretações explosivas e um texto fiel ao conceito de Shakespeare, o filme é uma obra de arte a ser colocada num pedestal.
🎬 minha lista de melhores do Oscar ficou assim:
Macbeth + A filha Perdida [AppleTV e Netflix] - não consegui escolher o melhor
Ataque de Cães [Netflix]
CODA [Amazon Prime]
Being the Ricardos [Amazon Prime]
Luca [Disney+]
Encanto [Disney+]
King Richard [HBO]
Não olhe pra cima [Netflix]
verso
“Já o sabia eu antes que tu tivesses nascido, disse o espírito que paira sobre as águas do aquário, o bicho-da-seda não morreu, dentro do casulo não ficou nenhum cadáver depois de a borboleta ter saído, tu o disseste, um nasceu da morte do outro, Chama-se metamorfose, toda a gente sabe de que se trata, disse condescendente o aprendiz de filósofo, Aí está uma palavra que soa bem, cheia de promessas e certezas, dizes metamorfose e segues adiante."
As intermitências da morte, José Saramago 💜
Linda, linda, linda! A cartinha abrindo mais um pedacinho de Amanda real pra gente ver (e ter vontade de voar pra SP pra abraçar). Morro de orgulho das tuas reinvenções. Te amo 💜
P.S.: cheguei antes do Gustavo e fiquei até preocupada! 😅
Conviver com pessoas tb me causa ansiedade. Mas ontem mesmo saí com amigos e não senti o tempo passar.