te escrevo esta carta ilegalmente. cravei a caneta, rasguei o relógio, enfiei o substack às pressas no meio do sanduíche de um texto sobre uvas catarinenses e um conteúdo científico sobre ecossistemas em risco. as edições da revista pacto número 2 também esperam ao lado enquanto digito respiro penso rápido
me desculpa desde já a falta de inspiração, a falta de pontualidade
ou a perda da pontualidade de uma newsletter que em três anos de existência/desistência/resistência nem sabe mais qual é seu dia de vir ao mundo.
.
desculpa desde já os eventuais erros porque é certo
eles estão por aí.
aliás,
me deixem errar pelo menos aqui.
.
desde o dia em que comecei a escrever literatura pra valer, há três anos, sempre que digo minha profissão jornalista sempre que digo que esta tem sido a atividade da minha vida toda, normalmente a resposta é lógica ah então tu sempre escreveu!
.
.
ããm… não.
.
quer dizer,
sim tenho escrito desde sempre.
mas escrever nem sempre é escrever.
.
cinco minutos cinco dias dez linhas dez páginas o que fonte disse
a escrita útil dos jornais os deadlines prazos-mortos
os mortos-vivos walking dead dead dead jornalismo
.
assim foram meus dias e noites e feriados por mais de dez anos nas
redações-sanatório.
.
eu sei, eu tenho essa tendência mórbida ao falar das redações, coitadas, esse lugar
esse lugar mítico onde são feitas as salsichas jornalísticas, esse espaço onde as esperanças são plantadas com agrotóxicos importados proibidos em 150 países
e na maioria das vezes colhidas às pressas antes de brotar pra valer.
.
o jornalista querendo ou não
o jornalista amando ou não
o jornalista escrevendo bem ou não
o jornalista ou não.
.
bem, não vou desromantizar tanto assim meu ganha pão. o jornalismo de massa também foi gostoso demais, vai. divertido. autêntico. humano. material infinito para a ficção, uma década de grandes personagens reais aguardando em meus bloquinhos a bênção da criação literária. fora isso tem muita gente boa e lúcida trabalhando nos jornais apesar de
.
eu é que não soube viver no sanatório sem enlouquecer.
há cinco anos fechei as portas das tvs e inaugurei outro tipo de jornalismo menos nocivo aos meus dias, um vôo livre sem a garantia das instituições
e com certeza mais feliz.
.
mas ainda é jornalismo. ainda é trabalhar escrevendo palavraspalavraspalavras muito verdadeiras
ainda é checa pra gente? foi o que ele disse. a expressão correta é. é essa informação. tem certeza disso?
.
as coisas certas nos lugares certos. cavar para transformar a vida concreta. usar a linguagem para traduzir o mundo é coisa mais linda sim sinhô.
.
acontece que na busca por 50 realidades micro e macroscópicas apuradas em cada página eu acabo perdendo minhas surrealidades
eu perco a imaginação.
a verdade sufoca o surto e a personagem morre no ombro dolorido da digitação.
.
o texto das certezas às vezes mata o errante.
tenta matar a escritora
a escritora iniciante que tá aqui ó na humildade mãos unidas tentando a brechinha oi literatura posso entrar? treinando sua habilidade embaixo d’água, afogar afogar na poesia até não
poder mais subir.
eu quero
afundar
mas
afundar exige tempo.
.
exige espaço
.
.
exige o esvaziamento
total dos órgãos respiratórios.
.
.
esta sou eu, roupa de mergulho, máscara, snorkel
papel e caneta na mão um projeto parado desde janeiro um bloco de notas cujo título IDEIAS é uma ode à acumulação, eu aqui calçando rapidão os pés de pato
já posso ir?
.
caio no
……………….mar aberto
……..flutuo
………..colete inflado
……..o oceano todo para mim
.
eu me preparando para a profundidade
as ondas rasas batendo no meu rosto enquanto
olho
há uma montanha no horizonte
está imóvel
.
…….ali
uma ilha de pedra, viu?
.
o monumento da verdade
oxigênio silício minerais alguma concentração de magnetite a porcentagem perfeita para se compor uma grande certeza:
a pedra.
.
não se preocupe, a pedra vai estar ali quando eu voltar.
.
coloco a máscara
viro a cabeça para baixo até encostar o rosto na água.
olho para dentro do mar
está vazio
.
esvazio os pulmões
e o colete
é quando começo a descer
.
.
.
.
.
.
eu
nua dos textos doublechek
nua do que existe
vestida do escuro
entregue
ao impossível
.
.
.
eu
descendo
no desconhecido
.
.
no mistério
do invento.
.
.
eu
esticando
a palavra
afinal
descobrindo
até onde pode
uma língua.
.
.
.
só submersa é possível escrever.
se trabalhar escrevendo as coisas concretas coisas verdadeiras
tentar matar a escritora, se arrancar dela o ar para a apneia das invenções,
eu prometo que vou e volto da pedra, arranco tudo de volta.
.
como esta carta encharcada de teimosia que te entrego em dia aleatório sem aviso prévio, uma prova da minha paixão por escrever e
ser lida.
.
um beijo!
p.s.
acredita que essa história de se molhar deu num livro inteiro? sim, meu primeiro livro da vida vai chegar em breve yeyyy ✨💜💜💜 louca pra poder te dizer mais e compartilhar essa alegria em detalhes. logo logo, tá? :)
verso
“Como estou cansado de histórias, como estou cansado de frases que descem lindamente, colocando todos os seus pés no chão! Além disso, como desconfio dos nítidos desenhos da vida lançados sobre meias folhas de papel de carta. Começo a ansiar por alguma linguagem reduzida, como a que os amantes usam, palavras quebradas, palavras inarticuladas, como pés arrastando-se no calçamento. Começo a procurar algum desenho mais em harmonia com aqueles momentos de humilhação e triunfo que vez por outra inegavelmente chegam. Deitado numa vala num dia de tempestade, ver depois da chuva enormes nuvens aparecerem marchando no céu, nuvens esfarrapadas, fiapos de nuvens. O que então me encanta é a confusão, a altitude, a indiferença e a fúria.”
A Ondas, Virginia Woolf.
Estou aqui...esperando pelo teu livro. Bjssss