precisei te escrever pra entender o que vivi ontem à noite. as cartas sempre me desenham algum tipo de mapa.
fui no cinema ver o filme A Paixão Segundo G.H., adaptação da obra-prima de Clarice Lispector [um dos livros da minha vida].
“A vida em mim é tão insistente que se me partirem, como a uma lagartixa, os pedaços continuarão estremecendo e se mexendo.”
A Paixão Segundo GH - Clarice Lispector
vi o filme, ouvi um pouco o diretor Luiz Fernando Carvalho, que estava na sessão especial aqui em Coimbra, ouvi uns comentários ruins da plateia, como o de que Clarice poderia ter dado um título melhor ao livro [socorro], saí antes do fim do debate [ufa], andei até em casa, dormi, acordei, tomei café, contei as horas, já são muitas… e sinto que poderia viver mais uns 10 anos sem conseguir dar um nome ao que me aconteceu na sala de cinema.
[talvez o cara que queria que o livro se chamasse "Delírio Segundo de GH" pudesse me dar uma sugestão…]
seja o que for, só sei que não foi bom.
infelizmente, não foi.
eu estava empolgada. comprei os ingressos com antecedência, pela primeira vez na vida. passei a semana assim yeyyyyy!
eu tenho uma obsessão por Clarice, chego a ser chata. isso começou justamente com GH. na primeira vez que li esse livro, sabia que estava diante de um buraco que jamais seria fechado, jamais entendido totalmente… e era essa a beleza toda.
eu estava diante de um quadro,
uma falta de fôlego
um afogamento.
precisava parar. sentar no banco do museu. aprender as horas. sentir.
aceitar que teria somente isso, sentir.
“Não entendo e tenho medo de entender, o material do mundo me assusta, com os seus planetas e baratas.”
em GH, senti Clarice de uma forma que poucas vezes tinha sentido outra coisa. uma experiência irreparável. intraduzível.
corta pra fevereiro de 2024:
cai no meu colo uma promessa de tradução.
o trailer anunciava: sim, respiramos Clarice por uma câmera. sim, traduzimos o intraduzível.
e eu:
curiosidade
estranhamento
empolgação
vamos? vamos!
sabia que seria uma experiência completamente diferente do livro, claro, mas não esperava que no caminho até essa outra língua eu perderia o tecido que me liga ao livro.
penso que uma obra é uma entidade.
tem corpo
e tem espírito.
a literatura é o corpo. o texto de Clarice é o espírito.
o cinema seria, então, o espírito reencarnado num novo corpo. seria outra pessoa, em matéria, mas bastaria olhar bem nos olhos pra sentir a mesma presença.
uma outra, mas herdeira do mesmo olhar, do mesmo susto.
mas
eis que no fim da noite de ontem, o filme era só um outro corpo. bonito e semelhante, mas estranho a
mim.
estranho à alma de Clarice. não era uma reencarnação, mas uma homenagem.
eles tentaram. agarraram com tanta força o espírito de GH,
com tanta agonia de dizer as palavras,
que o texto não aguentou e escorreu
pra algum lugar que eu não fui capaz de encontrar.
é que pra adaptar esse livro não bastaria repetir a palavra.
era preciso repetir a Paixão.
isso me deixou triste. como uma ofensa pessoal.
não me entenda mal, o filme tem bons momentos. eu fui gostando, depois não gostando… uma relação difícil de construir que, por fim, não vingou.
mas em geral, o longa - que é um recorte cru do texto de Clarice, um grande monólogo denso e ininterrupto por 2 horas - tenta ser realista demais. naturalista demais. uma representação fiel e literal do cotidiano daquela mulher que se vê perdendo partes de si mesma.
sinto que se perdeu uma oportunidade imensa de tocar o inconsciente, o mundo dos símbolos, com a fantasia contida em toda linha de A Paixão. a personagem do livro fala sobre a existência de uma barata no armário, sobre a própria existência diante de si mesma, diante dum outro.
existe uma potência imagética nessa narrativa, não acha? existe o SONHO. poderíamos estar, eu e todos na sala do cinema [incluindo os homens pitaqueiros], diante de um grande altar das sensações. uma ode ao impossível, que o cinema poderia ilustrar de uma forma única.
eu queria mais imagem. o indizível. queria pausa. silêncio. o espírito do texto sem a palavra. queria o surrealismo. só a desordem total poderia espelhar GH.
“Nunca antes soubera que a hora de viver também não tem palavra. A hora de viver, meu amor, estava sendo tão já que eu encostava a boca na matéria da vida. A hora de viver é um ininterrupto lento rangido de portas que se abrem continuamente de par em par. Dois portões se abriam e nunca tinham parado de se abrir.”
[eu sonho tanta coisa quando leio isso 💜]
no entanto, o que vi na tela foi uma atriz. uma ótima performance, sim. mas uma atriz. lendo Clarice, sem parar, palavra por palavra. eu fui ao cinema ver uma leitura. com uma barata e sua gosma branca no armário.
vou precisar me recuperar dessa decepção para voltar a Paixão. limpar a voz de Maria Fernanda Cândido. limpar esse corpo sem a alma que eu procurava.
para então voltar ao corpo anterior
me reencontrar com essa entidade que segue sendo uma coisa que não se pode compreender.
na última cena do filme, uma das partes realmente boas, GH diz entre lágrimas:
"eu não consigo me entender… e adoro."
eu também não consigo. e adoro 💜
depois dessa, vou dar um tempo de adaptações de coisas sagradas…
e dosar minhas expectativas [a parte mais difícil para os sonhadores].
"Vê, meu amor, vê como por medo já estou organizando, vê como ainda não consigo mexer nesses elementos primários do laboratório sem logo querer organizar a esperança."
Senti algo parecido vendo O livro dos prazeres. Também decidi não me aventurar mais em adaptações de Clarice (ainda que ame A hora da estrela)
A própria Clarice é uma entidade…
Quando soube que iam adaptar esse livro, achei estranho. Não vi ainda, mas acho q não cabe na linguagem do cinema. Acho que faria mais sentido no teatro. Beijo, Amanda!