grito é amor
oi 💌
na carta que te escrevo essa semana, não consigo dizer mais nada além de
JUSTIÇA POR MOISE
desde que soube do seu assassinato covarde, o coração grita e a pele quer se rasgar inteira. a pele, essa minha bem branca e nascida com privilégios tatuados, carimbos de entrada franca em qualquer lugar. essa pele que é a mesma que trucida pessoas pretas desde que se decidiu autoridade. é a mesma pele dos escravocratas, dos nazistas, dos fascistas de ontem, dos de hoje, dos de sempre.
no livro Veias Abertas da América Latina, Eduardo Galeano faz um verdadeiro mapa da opressão aqui no hemisfério sul da América. violências perpetradas contra os mesmos tons de pele, com o mesmo propósito usado contra Moise: calar.
numa revolta popular na Colômbia na década de 1950, grupos campesinos que lutavam contra a repressão e em favor de direitos sociais foram massacrados com mais de um milhão de projéteis e vinte mil bombas. um cala-te boca balístico que matou 180 mil pessoas. no auge do ataque, ouviu-se frases que poderiam ter sido proferidas hoje:
"Em plena violência, havia um oficial que dizia: 'Não me tragam histórias, tragam-me orelhas."
Assim como nesse Brasil de hoje onde Moise morre espancado por cobrar 200 reais devidos pelo patrão, lá também o sangue de gente preta escorria sob o dinheiro do branco.
"O banho de sangue coincidiu com um período de euforia econômica da classe dominante: é lícito confundir a prosperidade de uma classe com o bem-estar de um país?"
infelizmente a cor da minha pele [e da tua, se for branca] é veneno nesse mundo bruto. é a morte pro indígena, é a chibata pro preto. é preciso, sim, se saber veneno pra então ajudar o mundo a se curar de nós.
é preciso, antes de mais nada, ouvir. eu ouvi essa semana a voz de Alice. poeta angolana que, por algum motivo, caiu no meu colo justo quando eu mais precisava de poesia.
ela esteve em um programa da RTP em Angola e declamou uma poesia que me fez arrepiar. deixo aqui o vídeo de Alice e a transcrição [há o sotaque, que aliás, eu amo ].
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"eu era pequena, escola primária, inocente
mas curiosa nas palavras.
peguei nos lápis aqueles com todas as paletas de cores
amarelo torrado, azul marinho, cor…
com lápis na mão, sem nem esconder a minha confusão
olhei pro lápis e pra mim
que ainda era da altura de ter a língua a afiar, tocar os sinos presos na garganta,
dizer o que sinto e me espanta.
professora!
sim?
que raio é um lápis cor de pele?
veio-me a reprimenda
uma criança de tão tenra idade a questionar a autoridade…
e olhava pro lápis, olhava pra minha pele,
olhava fixamente pra aquele lápis cor de pele
.
Poeta
naquele dia decidi falar sobre unicórnios e fazer citações
porque ser-se poeta é falar de emoções
mas bem podia citar Luís de Camões, Fernando Pessoa
sem dizer um poeta preto
pensei então citar Martin Luther King, Nelson Mandela, só pra ficar bem na tela
e grudar no vazio do mundo, fazer dos ouvidos mudos
porque preferem um poema com sol no canto do papel, as nuvens pintadas azul
sem a dor no fundo
falar do que incomoda? andar a afiar a língua? quê que isso importa?
porque naquele dia fizeram de mim uma poeta cor de pele, de lápis, cinza, aguçada,
castanhado no nevoeiro dos mares de antes e sempre navegados
a minha língua é o lápis onde escrevo a cor de meus sentimentos
quem vai perder tempo a escrever verso de amor com esses tempos?
estas tempestades estes cismos, ismos, eu sei
podia ser menos uma poeta a falar sobre racismo, mas preferia o quê?
que veja o lápis carvão pegar-se a uma arma na mão?
que caísse em tantas outras estatísticas noticiários,
que me escondesse nos armários,
que nunca tivesse chegado a terminar o secundário?
.
'falas tão bem português', fecha os olhos a engolir todos esses clichês
mas há outros que zombam: 'ah, claro que sabes dançar'
e já sabe: quanto mais talento, mais se tolera a cor
porque a Beyoncé pode ser preta, afinal de contas o que importa é o interior
ouço as palavras a fazer ricochete num corpo em bala
eu vejo de sol a sol
mentimo-nos fortes que as mães têm calos de pensar
os pais, as mãos a esbranquiçar
fazemo-nos de fortes, que mais poderíamos ser
numa sociedade de moldes a fingir entender?
a rir, um eco a seguir, a pensar que #blacklivesmatter é mais um post pra curtir
mas Muxima mama está sofrendo, respira, mãos ao alto
levanta a poesia
esta poeta cor de pele já pintou a carta de alforria."
[Poeta, de Alice Neto de Sousa]
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gosto de tudo nesse poema, nessa língua afiada de Alice. gosto da ironia, mas também das palavras colocadas em seus lugares próprios. daquelas que são ditas para expressar o que devem, enfim.
só o que é nomeado existe. pois então digamos:
racismo
essa palavra tão viva, tão onipresente nas estruturas, mas tão pateticamente míope diante do espelho.
racismo é o nome da faca. é a espécie da madeira usada na paulada. é como se chama a regra compartilhada entre piscadelas de olho que garante morte grotesca a apenas alguns. racismo é o nome que engole todos os outros. não se levanta nenhum respiro de vida melhor enquanto essas letras ainda precisarem ser combinadas num grito de socorro.
por isso, mais do que nunca, precisamos ouvir e ler pessoas pretas. precisamos ouvir as palavras saírem da garganta.
“A palavra que é dita reivindica o corpo presente”, diz Jurema Werneck na introdução de Olhos D’água, de Conceição Evaristo.
a própria Conceição, em determinado conto, pinta nossos sentidos e coroa nossas letras quando diz:
“Gosto de ver as palavras plenas de sentido ou carregadas de vazio dependuradas no varal da linha. Palavras caídas, apanhadas, surgidas, inventadas na corda bamba da vida.”
queria poder ter te escrito hoje uma carta de palavras coloridas, perfumadas talvez, balançando livres no varal. mas as palavras precisam sair das emoções e ocupar os espaços sinceros. e eu estou sinceramente precisando me conectar com quem se importa.
espero que ajustemos nossas lentes e ouvidos. que nossas bocas não se calem pra denunciar o racismo. mas que se encham por inteiro pra pronunicar Moise, Marielle, Miguel, Mestre Moa. que pronuncie os que foram, por eles e por todos os outros cujo grito não chegou até nós.
te desejo amor, além de tudo. porque gritar também é amar.
com mais amor do que nunca, amanda 💜
P.S.:
✏️os dois livros mencionados na carta são fortes indicações minhas sempre. Veias Abertas abre uma verdadeira janela poética pra nossa real história como colônia. e Olhos D’água é uma série de contos duros e sensíveis sobre a condição do povo preto brasileiro.
✏️pra quem gosta de ouvir podcast, como eu, indico conhecer o Vidas Negras, um podcast sobre questões raciais e personagens icônicos da história negra no Brasil.
✏️ me escreve! vou adorar trocar ideia contigo sobre essa e outras cartas. e-mail, comentário ou até a velha e boa carta de papel:
CEP 05435-020. Rua Rodesia, 121. apto 41. Bairro Sumarezinho, São Paulo - SP :)
verso
aí vai um dos meus poemas minimalistas.
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enterro
procura-se os sinais vitais da palavra
os sinais vitais da palavra
sinais da palavra
da palavra
da
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Amei tua carta e teu poema ! O minimalista achei um espetáculo!
Não poderia ler essa carta em um dia mais propício.. no dia em que fui renovar meu RG, na cidade mais preta fora da África, e quando a funcionária - branca - me olha e pergunta: "etnia?" E eu digo "preta", recebo outro olhar curioso junto com a pergunta "preta? não seria melhor parda?" tomei como um golpe. Justo eu que demorei tanto para entender que sim, eu sou uma mulher preta, preta de pele clara, aquela que sempre foi "branca demais para ser preta, preta demais para ser branca", aquela que passou infância, adolescência e parte da vida de jovem adulta sem saber em qual etnia se encaixava e era aceita, mas sou logo questionada quando digo segura e em bom tom a minha etnia preta. Sou filha de um homem preto, neta de dois homens pretos, mas ainda assim sou questionada sobre. É nesse mundo em que vivemos, que pessoas pretas não são vistas, ouvidas, e que ganham manchetes policiais sendo vítimas (inclusive antes de ler essa carta necessária vi mais uma morte de mulher preta após sair com homem branco). Mas vivemos ainda em um mundo que "[...] a Beyoncé pode ser preta" mas eu não, e outros como eu também, e aqueles que são legitimados como pretos, os retintos acabam sempre marginalizados. Obrigada pela carta e pelas indicações. Devidamente favoritado! Seguimos juntas!