VN - voz do narrador
E - Escritora
r1 - repórter 1
C - Clarice Lispector
r2 - repórter 2
H - Hilda Hilst
[entra a Escritora. ela senta na poltrona, puxa o computador portátil, acende o cigarro, começa a digitar sem parar. uma música clássica toca. luzes do palco dançam, frissom, jogo de cores, um sonho cyberpunk.
a escritora para de escrever. lê para o público.]
E / se até da arte o homem faminto
devora as orelhas, os olhos
os aparelhos respiratórios
.
se até na arte, o dinheiro sedento
bebe bebe bebe a energia vital
dos que vivem do pensamento
quando é que estamos prontos
para o grandioso?
.
[na tela ao fundo do palco, começa a projeção com imagens das escritoras Clarice Lispector e Hilda Hilst. a Escritora segue escrevendo e consultando livros à sua volta. uma voz narradora fala.]
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VN / A escritora brasileira Clarice Lispector não gostava de dar entrevistas para televisão. Mas um dia, em 1977, aceita sentar em frente a um repórter da TV Cultura. Está doente. Também está cansada. Ela morreria poucos meses depois. Em seu último livro, A Hora da Estrela, criou Macabéia, mulher nordestina que morre do excesso de gente e de máquina.
Em 1990, a escritora Hilda Hilst, contemporânea e amiga de Clarice, levanta a saia da moral literária. Lança O Caderno Rosa de Lory Lamb, um livro escandaloso sobre uma criança prostituída. Uma metáfora da escritora no mercado literário. Hilda, em silêncio por anos, dá entrevista para a TV Cultura para divulgar o livro. Para rir do mercado. Hilda morreu em 2004.
Nem Clarice nem Hilda conseguiram viver só da escrita.
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[a atriz para de escrever. se levanta, pega um bolo de folhas que tem ao seu lado. rasga em pedaços, enquanto encara o público com olhos firmes. música intensa. ela vai embora.
na tela, se inicia a reprodução de uma collage feita com as entrevistas de Clarice e Hilda. no palco, atores montam o cenário simples de duas entrevistas em paralelo, um reflexo das gravações.]
r1 / Clarice, a partir de qual momento
você efetivamente decide assumir…
C / eu nunca assumi
a carreira de escritora?
eu nunca assumi…
eu escrevo quando eu quero.
eu sou uma amadora e faço questão.
.
r2 / Este país não gosta de seriedade, Hilda?
H / não gosta, você não pode pensar em português.
.
C / tem períodos de produzir intensamente
e tem períodos… hiatos
em que a vida fica… intolerável.
.
H / pensar é uma coisa horrível, os editores odeiam, te cospem na cara.
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r1 / esses hiatos são longos ou não?
C / depende. podem ser longos
e eu vegeto… nesse período [funga]
por exemplo, acabei a novela, tô meio oca.
tô meio oca…
[aqui, as entrevistas passam a ser reproduzidas só em áudio e no corpo dos atores. Clarice e o repórter, Hilda e a repórter, todos ganham vida em frente à plateia, com suas vozes originais. na tela, uma outra collage simbólica:
o ovo / a galinha / o sexo / o adulto / a criança / o obceno / a saia da santa…
os atores perseguem os gestos da voz nesse ping-pong. quando uma dupla fala, a outra olha para ela como se estivesse assistindo junto com a plateia. se unindo e se distanciando dos personagens.]
H / as pessoas acham Lory Lamb absolutamente repugnante e… e eu acho que era exatamente isso que eu quis fazer. mas só que eu considero pessoalmente a Lory Lamb um livro pueril, um livro meninil, é uma pornografia pra crianças. eu vou lançar no segundo semestre pra adultos. chama-se Contos de Escárnio e Textos Grotescos.
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r1 / o adulto é sempre solitário?
C / o adulto é triste e solitário.
[silêncio]
r1 / e a criança?
C / a criança… [silêncio]
tem a fantasia… solta.
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H / a verdadeira natureza do obceno é a vontade de converter. isso é uma…
o Henry Muller já diz… ele dizia eu quero luz e castidade. porque
de uma certa forma se você for consideravelmente repugnante, você
faz com que o outro comece a querer a nostalgia da santidade.
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r1 / a partir de que momento o ser humano
vai se transformando em triste e solitário?
C / isso é segredo.
desculpe, não vou responder.
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H / eu espero ficar uma excelente pornógrafa (sorriso sarcástico).
r2/ os críticos, eles vão aceitar ou estão aceitando
Hilda Hilst que escreve bandalheiras?
H/ não, não estão. parece que a santa levantou a saia. o riso é uma solução
muito grande pra uma saúde mental geral. pra minha, foi excelente.
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C/ tem um conto meu que eu não compreendo muito bem.
r1 / que conto?
C/ o ovo e a galinha.
r1 / qual o seu trabalho favorito?
C / o ovo e a galinha.
[voz do narrador começa a ler trecho de O ovo e a galinha. um grupo de dança entra em cena com a dança do ovo. entrevistadas e repórteres se viram para assistir.]
VN / De manhã na cozinha sobre a mesa vejo o ovo. Olho o ovo com um só olhar. Imediatamente percebo que não se pode estar vendo um ovo. Ver um ovo nunca se mantém no presente: mal vejo um ovo e já se torna ter visto um ovo há três milênios. – No próprio instante de se ver o ovo ele é a lembrança de um ovo. – Só vê o ovo quem já o tiver visto. – Ao ver o ovo é tarde demais: ovo visto, ovo perdido. – Ver o ovo é a promessa de um dia chegar a ver o ovo. – Olhar curto e indivisível; se é que há pensamento; não há; há o ovo. – Olhar é o necessário instrumento que, depois de usado, jogarei fora. Ficarei com o ovo. – O ovo não tem um si-mesmo. Individualmente ele não existe. Ver o ovo é impossível: o ovo é supervisível como há sons supersônicos. Ninguém é capaz de ver o ovo. O cão vê o ovo? Só as máquinas veem o ovo. O guindaste vê o ovo. – Quando eu era antiga um ovo pousou no meu ombro. – O amor pelo ovo também não se sente. O amor pelo ovo é supersensível. A gente não sabe que ama o ovo. – Quando eu era antiga fui depositária do ovo e caminhei de leve para não entornar o silêncio do ovo. Quando morri, tiraram de mim o ovo com cuidado. Ainda estava vivo. – Só quem visse o mundo veria o ovo. Como o mundo, o ovo é óbvio.
[dançarinos deixam o palco. as luzes voltam a focar as duplas das entrevistas. os atores voltam a dublar Clarice, Hilda e os jornalistas]
C/ mas eu não sou solitária, não, tenho muitos amigos.
e só tô triste hoje porque tô cansada. no geral, sou alegre.
tô cansada de mim.
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H/ eu acho, assim, que o escritor deseja ser lido.
não adianta nada dizerem pra mim que eu sou escritora excelente,
aí eu pergunto o senhor leu? não, senhora, nunca li.
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C/ eu acho que quando não escrevo eu tô morta.
é muito duro o período entre um trabalho e outro
e ao mesmo tempo é necessário pra haver uma espécie de esvaziamento da
cabeça, pra poder nascer alguma outra coisa.
se nascer… é tudo tão incerto…
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r2 / Hilda, Lory Lamb é um ato de rebeldia?
H / é um ato de agressão. não é um livro, é uma banana, a Lory Lamb,
que eu estou dando pros editores, pro mercado editorial. porque durante 40 anos eu trabalhei a sério, tive um excesso de seriedade e de lucidez, e… não aconteceu absolutamente nada.
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C / não altera em nada. não altera em nada.
eu escrevo sem esperança que o que eu escreva
altere qualquer coisa. não altera em nada.
r1 / então por que continuar escrevendo, Clarice?
[acende um fósforo, acende o cigarro]
e eu sei?
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H / eu acho que as pessoas precisam ser acordadas. é muito importante,
se a pessoa tá dormindo muito tempo, você de repente
faz uma ação vigorosa pra que a pessoa se levante.
C / agora eu morri. vamo ver se eu renasco de novo.
por enquanto eu tô morta.
r2 / Como a crítica, que costuma te colocar num pedestal ao lado de Guimarães Rosa, Clarice Lispector, entre os grandes monstros Sagrados da Literatura Brasileira, reagiu ao teu livro O Caderno Rosa?
H / eles estão mortos, estão famosíssimos… daqui uns anos eu vou… daqui a 50 anos vai ser ótimo! eu na cova, acho que vai ser lindo, eu famosa e tudo… (risos)
[começa a tocar um remix, um funk feito a partir da frase "eu na cova, acho que vai ser lindo, eu famosa e tudo”. na tela, a collage agora mistura zumbis, cemitérios à noite, aplausos, flashes de câmera, risos.
no palco escuro, os atores saem e voltam carregando uma parede transparente de acrílico sobre um suporte de rodinhas. enquanto a música toca, fazem a própria collage ao vivo de cartazes, desenhos e pinturas que a plateia ainda não consegue assimilar - está contra o brilho do telão. no fim do videoclipe, luzes se acendem. no vidro, se vê a explosão:
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p.s.: a colagem desta peça foi feita a partir das entrevistas icônicas disponíveis online:
incrível!!