cortar pra multiplicar
oi 💌
dia desses peguei um envelope de uma velha pasta de coisas da vida. entre papeis diplomas certificados escrituras, o mais importante talvez fosse o envelope.
branco de papel simples nada escrito. dentro, tudo: todas as cartas de amor que guardei cravadas nas unhas pra não soltar, ande eu por quantas casas cidades e vielas andar.
quando fui mundo afora nos últimos anos [pré-covid], meu pedaço de tudo ficou num armário da minha mãe, guardiã das minhas guardanças.
na recente ida à minha terra, Pelotas, pesquei a relíquia e reli tim-tim por tim-tim das cartas dos outros pra mim. todas lindas. estava nostálgica
numa delas, a mais especial [desculpem as demais], minha vó me escreve num momento crucial: eu saía de casa pela primeira vez pra viver sozinha na cidade grande.
Nonó, como chamamos minha vó Norma, uma poeta nunca descoberta, escreve com delicadeza o retrospecto da minha vida. meu nascimento quase desenganado, os primeiros suspiros, as primeiras rajadas de amor.
“Quando iniciou o signo de Peixes em 20 de fevereiro de 1988 nasceu uma linda e iluminada criança” - assim começa a carta de caligrafia invejável!
chorei e choro todavez 🥲💜
reli há poucos dias nesse novo ciclo de peixes, 12 anos depois da carta, agorinha, nessa época piegas de fazer aniversário e reavaliar a própria existência.
além do lirismo da escrita da Nonó, outra coisa me marcou: os pequenos reflexos, pingados aqui e ali, de quem era eu, leitora neta de então. a que já não está.
foi como olhar num espelho ao contrário, ou na beira de um lago mágico em que a água me reflete alguém mais… jovem paciente incalculado esperançoso iludido
alguém que hoje é outra coisa.
lembrei de Risque essa Palavra, da Ana Martins Marques, um dos livros de poesia mais explosivos que já li. um dos meus poemas favoritos bateu fundo porque bateu nisso:
quem fomos e quem somos já não se equivalem, tampouco empatam com quem seremos. a vida é uma "serralheria" de nós.
.
“Nunca é fácil
abandonar o que se ama
vê: toda estação
é uma espécie de serralheria
aqui se cortam
pessoas ao meio
se fosse possível
ir e ficar
depois poderíamos
contar a nós mesmos
sobre nossa própria vida
nos encontraríamos
simultaneamente
mais gordos e mais magros
antes e depois do divórcio
os filhos que tivemos confraternizariam
com os que acabamos por não ter
amaríamos profundamente o homem ou a mulher
de quem já mal nos lembramos
teríamos ao mesmo tempo uma coleção de mapas
e uma horta
dormiríamos em hotéis
e no nosso quarto de infância
.
Mas não é assim
.
Fazer as malas é tarefa impossível:
aquele que ainda não partiu
tem que colocar na mala
aquilo de que precisará
aquele que vai chegar
.
A terra prometida a um
será no entanto entregue
a outro
.
As camisas que não cabem
empilhadas sobre a cama
servem perfeitamente
naquele que vai partir
mas deverão vestir
aquele que vai chegar
.
A passagem comprada por um
será usada por outro
e de seu próprio álbum de família
olharão para ele
parentes de outra pessoa
.
Quem está de partida
arruma a mala
de um desconhecido”
Ana Martins Marques, senhouras e senhoures.
apesar da crueza com que Ana nos esfrega nas fuças a impermanência da vida, tal coisa não me deixa melancólica. contrário, quero mais é deixar de ser a todo instante. me empolga fazer as malas de outro eu
tenho verdadeira fixação por mudar. por isso me apetecem as viagens a tempos idos, porque me revelam quantas já fui
volto à carta da minha vó: no final ela diz que sou como animal que sai de baixo das asas da mãe pra viver com as "patas no chão e a mente arejada”.
leio e dou risada pequena, como quem conta uma piada interna pra si. hoje, ironia, sou a que prefere estar de ponta cabeça, com as patas arejadas no céu e a mente firme no chão. 🙃
encerro nossa carta te provocando a se deixar cortar ao meio tododia. doendo ou não, serre-se. multiplique-se na divisão de si!
te permite não servir mais na roupa que um dia separaste. usa sem cerimônia a passagem comprada por outro que foste, mesmo que desvie o destino.
desejo muitas partidas e repartidas pra ti e pra mim. um beijo carinhoso da mulher de 34 anos que sou apenas nesse instante.
com amor, amanda 💜
P.S.
✏️ leia mulheres brasileiras, leia mulheres vivas, leia Ana Martins Marques. o poema que trouxe na carta vem do livro Risque esta palavra , lançado ano passado por esta que é uma das nossas maiores poetas da atualidade.
🎬 comecei a dar check nos filmes indicados ao Oscar. como já assisti a seis, vou colocá-los na ordem do meu coração [atualizo a lista nas cartas futuras]:
A filha Perdida* - Netflix
CODA, No ritmo do coração - Amazon Prime
Ataque de Cães (empata com Coda) - Netflix
Being the Ricardos - Amazon Prime
Luca - Disney+
Não olhe pra cima - Netflix
* ainda sem entender como a academia sequer indicou a melhor filme do ano aquele que é sem dúvida o melhor que vi nos últimos tempos, A filha perdida. como?
✏️ A filha perdida é uma adaptação do livro escrito por Elena Ferrante, escritora italiana pela qual sou declaradamente apaixonada. o livro é imperdível, tanto quanto o filme. é uma dissecação da alma humana, destruição de dogmas, tributo à maternidade real.
verso
nessa carta otimista, trouxe poema sobre caos. é assim quando se tem pés nas nuvens e cabeça no chão: sonha-se, mas de olhos atentos.
.
desabito
.
tem dias contados que
um tato fosco me basta
o joelho ralado
a parede de quina
a pedra que o chão desprezou
a madeira e a verdade
desenvernizadas zero lisura arranhadas
o dedo que pecha no tranco
a vida que só sabe
caminharenredada
.
são dias de guerra
em que a paz não vale o toque
é preciso que doa ou
pelo menos fure devagarinho o
Peito
se rasgar é aula de instante
uma raiva uma promessa um óbito
A tolerância está morta!
Venham buscar a carcaça!
.
nem sempre o prazer é gentil
.
a ardência é boa de saber que arde
projeta percepções empurrões
bruteza de fazer andar
desabitar esse lugar conforto
que o macio da ignorância nos dá.
não gosto de acordar e não te ver do meu lado. tão raro, mas tão ruim. hoje foi diferente, não tavas do meu lado, mas a sensação não foi ruim porque eu sabia que tavas ali pertinho, na sala, terminando de escrever algo que faria bem - a mim e a outros - num momento em que falta tanto que nos faça bem. brigado por isso. te amo demais.
terminei essa carta e fui pegar uma caixa antiga que tenho aqui em casa, já amarelada, mas ainda com desenho de flores para ler as cartas que guardo de amigos e amigas da época da escola. Nenhuma tão lírica quanto “Quando iniciou o signo de Peixes em 20 de fevereiro de 1988 nasceu uma linda e iluminada criança” rsrs mas o gosto da nostalgia de me relembrar estando entre aquelas pessoas, então amigos, aos 11.. 15 anos foi sublime, e um pouco triste por olhar hoje ao redor e quase não vê-los mais. Obrigada por tanta verdade em suas linhas! e obrigada por me fazer lembrar dessa minha caixa de cartas! Um beijo carinhoso!