[resfriada e um tanto fanha 🫠, no play acima eu leio pra ti 💜]
alguma coisa acontece no meu coração quando uma luz desaparece
não entendo o funcionamento de uma estrela imaterial
que some de verdade,
concretamente, diante dos nossos narizes
como assim, partiu?
como assim, nos deixou aqui sem ela?
sério
acho uma puta sacanagem.
um ultraje à minha arrogância de achar que as coisas minhas
muito mais que lindas
estas ficarão
Vivas.
minha ousadia de chamar de minhas
só porque tem cheiro de coisa maluca
me fazem sentir eu mesma,
maior
cheia de graça.
quando Rita Lee se foi, pensei sobre desaparecimento
do que é fundamental
sofri
como sofri quando perdi (perdemos) Gal,
quando perdi Elza.
então abri minha caixa de e-mail e lá estava a carta de outra deusa que eu proíbo terminantemente de desaparecer: Patti Smith. sim, pra quem não sabe, ela tem uma newsletter tipo a minha (risos). risos porque ela é a Patti Smith, né, uma carta dela é simplesmente uma carta de Patti Smith e, bom, nada se parece com isso 💜
Patti falava de eternidade. lia o poema Eternidade, de Rimbaud. e de repente me levantava da tristeza
me tirava da finitude
me trazia pro infinito.
“De novo me invade.
Quem? – A Eternidade.
É o mar que se vai
Com o sol que cai.
Alma sentinela,
Ensina-me o jogo
Da noite que gela
E do dia em fogo.
Das lides humanas,
Das palmas e vaias,
Já te desenganas
E no ar te espraias.
De outra nenhuma,
Brasas de cetim,
O Dever se esfuma
Sem dizer: enfim.
Lá não há esperança
E não há futuro.
Ciência e paciência,
Suplício seguro.
De novo me invade.
Quem? – A Eternidade.
É o mar que se vai
Com o sol que cai.”
Arthur Rimbaud, traduzido por Augusto de Campos
o encontro do sol com o mar
a linha onde tudo vira um
nem esperança, nem futuro
sem Tempo-relógio
não existe raciocínio lógico que se aplique
só o encontro do sol com o mar
é assim, sem fim nem começo,
que Rita Lee existe
no encontro do sol com o mar
ela existe
sem Tempo
é o destino de toda gente que ama demais
escrevo essa carta ouvindo suas músicas, suas rezas, suas preces de loucura, liberdade e amor à vida,
sua ode à eternidade.
sorrio
penso na oportunidade que é ter um corpo
quando na verdade não se tem nada a não ser a eternidade de transformar-se em pó,
fixar-se como uma memória contente,
sair voando como um pardal meio de contrabando e então virar semente de jardim.
“se Deus quiser
um dia acabo voando
tão banal, assim como um pardal
meio de contrabando
desviar do estilingue
deixar que me xinguem
e tomar banho de sol, banho de sol, banho de sol…
[…]
se Deus quiser
um dia viro semente
e quando a chuva molhar o jardim
ah, eu fico contente
e na primavera
vou brotar na terra
e tomar banho de sol
banho de sol, banho de sol”
Baila comigo, Rita Lee e Roberto de Carvalho
Rita não sabe morrer
Rita só sabe reverberar no azul amarelado de um pôr do sol
a mulher livre livre livre
que fez da rebeldia uma bandeira de amor e aceitação
fez da genialidade e da falta de paciência um trunfo
contra a chatice
a caretice
hoje, essa mulher livre me ensina mais sobre eternidade do que sobre qualquer outra coisa
me ensina inclusive a não se levar tão a sério
afinal existe coisa mais cafona que se achar importante?
um porre! ela diria
querer ser eterno também, uma chatice sem fim.
no livro Futuro Ancestral, o maravilhoso Ailton Krenak faz algumas reflexões sobre a obsessão humana pela eternidade, a fixação por “deixar sua marca” ou “ficar para a história”. a crítica de Ailton expõe a imbecilidade que é manter um desejo assim num mundo de tantas mutações, tão incerto e tão grande
grande de um jeito que nós, humanos, passaremos
(e, aliás, passaremos bem mais cedo do que imaginamos se continuarmos nos preocupando em “eternidade”, como faria um plástico, e menos em salvar a espécie da extinção, como faria um animal inteligente)
além de tudo que Rita era como artista e mulher, era também um homo sapiens que pensava no planeta. sabia que era uma pontinha da imensa rede de cuidado que precisava continuar.
na verdade Rita não queria ser eterna. não queria ser mais do que um perfume de primavera, alimentar os germes, bactérias, fungos, animais silvestres, passarinhos em migração
não queria mais do que fazer uma ou outra pessoa feliz
e como fez!
no fundo, eternidade é sobre tocar alguém
se perpetuar no outro, fazer com que a memória que guardam de nós nos infinite
mesmo que seja uma única memória, de uma
única pessoa
amar e ser amado, enfim
é se perpetuar além do Tempo
é flutuar no infinito sol-e-mar
é ser livre, como Rita sempre foi
e sempre será
livre até pra mandar tudo a merda
inclusive ela mesma
hahaha
eu não poderia terminar essa carta sem dar uma boa risada de Rita Lee Jones.
obrigada, deusa
por tudo
seguirei aqui, por ti, “brindando a morte e fazendo amor”
ps
🎬 Viva, a vida é uma festa - uma das minhas animações favoritas, essa obra linda fala sobre memória, amor e eternidade como poucos filmes fizeram.
🎬 Quem é você Charlie Brown? - documentário emocionante sobre a vida e a obra de Charles Schulz, criador de um ícone cultural insubstituível: Peanuts. Charlie Brown é um daqueles desenhos que eu vejo em qualquer dia, em qualquer momento 🫶
verso
“De morrer, sim, eu sabia, pois morrer era o futuro e é imaginável, e de imaginar eu sempre tivera tempo. Mas o instante, o instante este – a atualidade – isso não é imaginável, entre a atualidade e eu não há intervalo: é agora, em mim.
Entende, morrer eu sabia de antemão e morrer ainda não me exigia. Mas o que eu nunca havia experimentado era o choque com o momento chamado “já”. Hoje me exige hoje mesmo. Nunca antes soubera que a hora de viver também não tem palavra. A hora de viver, meu amor, estava sendo tão já que eu encostava a boca na matéria da vida. A hora de viver é um ininterrupto lento rangido de portas que se abrem continuamente de par em par. Dois portões se abriam e nunca tinham parado de se abrir.”
Clarice Lispector (em um dos meus livros favoritos, A paixão segundo GH)
✨
“Rita não sabe morrer” é isso. Rita é pra sempre! Lindíssima homenagem, amiga :)
morrer todos iremos. viver, só alguns… a eternidade da Rita é mesmo uma imensa inspiração. te amo