uma praia
três personagens vagam entre a morte e a eternidade
a cabra está morta, a criança olha, o homem nu mira o horizonte.
essa foto foi tirada pela francesa Agnès Varda em 1954, quando ainda era uma menina. saiu de casa em Saint-Aubin-sur-Mer, pegou sua câmera 13/18, aparelho enorme usado na época [tão grande que os franceses chamavam de "quarto"], e resolveu reunir elementos vivos
em torno da morte.
depois do quartinho portátil, Agnès passou a fazer cinema, e o resto da história é que ela se tornou uma das maiores cineastas de todos os tempos.
[estou num momento de obsessão por seus filmes 💜]
encontrei um doc do qual nunca tinha ouvido falar,
Ulisses,
que é o nome da foto
e o nome do menino na praia.
é um curta-metragem, de 22 minutinhos, filmado em 1982. no filme, ela resgata esta foto e resolve ir atrás dos personagens 30 anos depois.
só pra saber como estão, se lembram da fotografia, se ela ainda causa algum sentimento,
saber como a memória se comporta.
uma premissa simples, e estupenda. Fantástica.
primeiro ela encontra com o homem nu
[no documentário ele dá entrevista também nu, embora esteja sentado em seu escritório de diretor criativo da revista Elle. caprichos estéticos, de Agnès, suponho]
mas então: o homem, um egípsio chamado Fouli Elia, pega a fotografia e viaja uns instantes. ele lembra do menino, sim, que conheceu no dia da foto. lembra da praia, e talvez da cabra.
Agnès avança,
quer sugar mais daquela janela memorial
e mostra outras fotos que tirou dele na mesma época:
desta vez, retratos, desta vez, com roupas.
aí acontece um dos diálogos mais interessantes do filme:
F. Lembro-me desta camisa, mas não lembro desta pessoa.
A. Como é perturbador! Lembramos da roupa, mas não lembramos de quem éramos.
F. Eu não quero, é porque eu não quero lembrar-me.
"lembramos das roupas
mas não de quem éramos."
pensei sobre como funciona nossa memória, como ela avança só até onde permitimos, seleciona partes que desejamos guardar, ou aquelas que nos coroam como sofridos, corretos, amorosos, os heróis
ou, se não for assim, nos deleta
pra que não haja o barulho da contradição
pra que possamos seguir contando somente com o presente de nós
o conforto do Eu Agora, controlado, calculado, conhecido.
então Agnès chega a uma livraria e encontra com o dono. ele é Ulisses, o menino da praia, a esta altura, já um homem casado e com filhas.
Ulisses não lembra da foto, nem da cabra, muito menos do homem a seu lado. seu desconforto é nítido. ele não gosta de estar numa imagem da qual não lembra absolutamente nada. Agnès tenta amaciar suas lembranças, encontrar um cantinho afetivo onde, talvez ele possa ter guardado aquela tarde
mostra um desenho que o Ulisses criança fez daquela mesma foto. a imaginação sobre a foto
nada.
Ulisses adulto não lembra sequer do desenho que fez. mas agora, com a pintura na mão, alguma coisa muda nos seus olhos…
ele se sente mais próximo de si mesmo. sente que existe um lugar onde ele e sua criança interior estiveram juntos, algum lugar só seu
sua Imaginação.
aquele desenho é uma parte dele, mesmo que perdida. ainda é uma parte.
Agnès chega à conclusão de que cada um cria a sua própria história sobre um acontecimento, mesmo que o real e o imaginário se confundam. qualquer lembrança ainda é uma história, qualquer desmemória ainda é memória, em algum lugar.
fiquei mexida
pensando sobre a fronteira tão pequena, puída e frágil, a um fio de romper-se, a fronteira que divide a memória da imaginação.
se as lembranças são escolhas
são montagens mentais
se a memória é só o que decidimos guardar, ela também é imaginação.
toda memória é imaginária
toda memória é FICÇÃO
porque nos leva a um lugar de criação.
e executa tão bem o papel que até quando não está presente nos convida a imaginar
como foi com Ulisses adulto: a não-memória o obrigou a imaginar quem ele era no passado, em que criança existia quando desenhou a cena da praia.
o esquecimento ocupa espaços vazios com outros objetos
novos
estranhos
até que conhecidos
até que nossos.
então faz-se uma nova memória: as fantasias são parte do que contamos sobre nós mesmos
e isso também é lembrar!
espero que tua experiência lendo minhas cartas sejam guardadas num lugar seguro. e se não couber ali, que a imaginação possa contar coisas lindas sobre esse tempo que passamos juntos por aqui.
um beijo,
p.s.
🎬 o filme Ulisses, de Agnès, está no Mubi, assim como vários outros da cineasta.
🎬 assisti: A flor do meu desejo, está também no Mubi este clássico de Almodóvar, um dos meus cineastas favoritos.
📖 tô lendo: Luanda, Lisboa, Paraíso, livro premiado da angolana Dijamilia Pereira de Almeida. ainda estou começando, mas por enquanto gostando muito.
🖼 visitei: exposição O que não se vê – Rhizomatiks, na Japan House. um dos principais grupos criativos do Japão mistura tecnologia e expressão humana, o resultado é hipnotizante. entrada gratuita! eu amo a Japan House 🥹💜
verso
Agnès considera sua foto uma natureza morta. isso me levou direto a esse poema de Pagu, a icônica Patrícia Galvão. alguma coisa de memorial, alguma coisa de cheio e de vazio:
[declamo aqui em áudio 👇]
Natureza Morta
“Os livros são dorsos de estantes distantes quebradas.
Estou dependurada na parede feita um quadro
Ninguém me segurou pelos cabelos.
Puseram um prego em meu coração para que eu não me mova
Espetaram, hein? a ave na parede
Mas conservaram os meus olhos
É verdade que eles estão parados
Como os meus dedos, na mesma frase.
As letras que eu poderia escrever
Espicharam-se em coágulos azuis.
Que monótono o mar!
.
Os meus pés não dão mais um passo.
O meu sangue chorando
As crianças gritando,
Os homens morrendo
O tempo andando
As luzes fulgindo,
As casas subindo,
O dinheiro circulando
O dinheiro caindo,
Os namorados passando, passeando
Os ventres estourando
O lixo aumentando,
Que monótono o mar!
.
Procurei acender de novo o cigarro.
Por que o poeta não morre?
Por que o coração engorda?
Por que as crianças crescem?
Por que este mar idiota não cobre o telhado das casas?
Por que existem telhados e avenidas?
Por que se escrevem cartas e existe o jornal?
Que monótono o mar!
.
Estou espichada na tela como um monte de frutas apodrecendo.
Se eu ainda não tivesse unhas
Enterraria os meus dedos nesse espaço branco
Vertem os meus olhos uma fumaça salgada
Por que este mar idiota não cobre o telhado das casas?
Este mar, este mar não escolhe por minhas faces.
Estou com tanto frio, e não tenho ninguém…
Nem a presença dos corvos.”
Linda news! Que história, que mergulho ❤️
Fiquei pensando sobre a nossa relação com a memória. Quão frágil ela é. E se Ulisses não fosse, de fato, o menino da foto? Somos tão incertos de nossas vivências que acreditamos quando alguém nos diz "este és tu, fizeste isto, viveste ou disseste aquilo", independentemente de lembrarmos e de ter acontecido ou não. Já não se confundem os pensamentos quando os mais velhos contam uma história e trocam os envolvidos? Ou quando nós mesmos não sabemos direito quem estava conosco em um dado momento, para só depois darmo-nos conta de que, na verdade, a história nem era nossa? Fina teia de lembranças, que com vento se desfaz. Se reconstrói como e quando dá. Por vezes, só fica vazia.
Amei a cartinha e as reflexões que causaram.